quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Camisa de onze varas

Camisa de onze varas



Na sala de aula, depois de uma discussão normal, dessas que preparam a florada da boa redação, os adolescentes estavam em alvoroço. A questão do preconceito, ou a falta dele, sempre toca a alma inquieta de quem desnuda aos pouquinhos faces tão sensíveis das relações humanas. Em todo mundo, um dos lados está em carne viva, suportando a brisa dos comentários hipócritas que ficou bonito fazer... enfim.
Justo aí, achegou-se a menininha de seus 13, no máximo 14 anos; esperou que os outros saíssem da sala, aproximou-se com os olhos agitados, mas econômicos de informação. E quando eu pensei que da boca não ia sair coisa alguma, tamanho constrangimento seus gestos mostravam... a bomba: “Sabe, professora, eu mesma já perdi alguns amigos porque eu sou bi.”
- Sei. Bi.
- As pessoas não entendem as opções da gente.
- É verdade. Mas o mundo é assim mesmo. Um dia a gente muda.
No fundo, eu não sabia se olhava, se não olhava pra ela. Era uma criança! Como podia ter tanta certeza de que era bissexual? Fiquei ali, meio com cara de... imaginando: bom, pra imaginar isso, ela no mínimo deve ter experimentado os dois lados. Mas é tão jovem... Que triste não ter curtido mais a ausência desse instinto. Não é que seja ruim, É que ele nos atormenta a partir de um certo despertar e depois não sabemos mais olhar para pessoas e situações com a paz e a ingenuidade de um ser assexuado. Acho que é isso que sinto. Ainda não identifiquei muito bem.
Também, não sei se ver as pessoas e as situações como se fôssemos assexuados, sem qualquer pensamentozinho sacana, sem qualquer desejozinho... não sei se teria muita graça. Mas também, quem é que disse que o desejo em si – ainda por cima se for por alguém que o mereça – não tem algo de puro? Vai ver que os animais é que sempre tiveram razão. E nós é que sujamos as relações corporais com uma energia que não deveria existir.
Assim, hoje, quando dizemos que estamos voltando aos instintos animais, deixando rolar solto o que só os bichos é que se permitiam, talvez não seja uma reflexão de censura, mas uma observação de purificação.
Por outro lado, se as religiões continuam a nos mostrar que há caminhos considerados certos e outros considerados errados para o comportamento que damos a nosso corpo, é preciso ainda se aprofundar filosoficamente nesse aspecto em busca de uma razão, de um porquê, porque não é à toa que os conceitos se cristalizam, nem à toa que se bate tão forte numa mesma tecla.
Talvez, o problema da disseminação das doenças traga risco à humanidade, talvez a promiscuidade ponha em xeque o discernimento do que se sente por a ou por b, talvez o homem não tenha mesmo a pureza inerente aos bichos para ganhar tamanha liberdade sexual.
O homem consegue se libertar pelo sofrimento, mas, ao ser completamente livre, volta a sofrer de novo para refrear o que não controla. E, sejamos honestos, quanto mais podemos, mais perdemos o controle. Ocorre que a loucura nasce justamente no campo onde os limites não são identificados. E os limites não são os preconceitos. São apenas conceitos. Os nossos próprios, sejam eles quais forem.
A menina pensou que eu não refletira muito sobre o que ocorrera. Mas nem imagina o quanto me fez pensar. Ela foi-se embora tranqüila, crendo, sinceramente, que a professora a entendera totalmente. E eu, pobre de mim, enfiei-me numa camisa de onze varas que não há maturidade suficiente para clarear-me tantas dúvidas.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

O inverno do meu tempo



Que é feito de você?, Cartola? Desta vez eu vou dizer que o deixaram desfigurado como cidadão de primeira classe. Sua vida, sua obra não representou sua força como um começo de respeito social, um começo de aceitação na roda dita civilizada e ouvida. Foi, sim, o fim da estrada que já não havia começado na infância. Foi a porta que não se abriu por inteiro.
Ouvir Cartola a dois, nós dois, num momento de grande sensibilidade, de amor profundo, de pureza, de verdade... tudo ótimo. Mas ele não se sentaria à sua mesa. Sobre o que conversariam? Seria o silêncio de um cipreste calando o que deveria levitar nas notas... A figura escurinha, cor da (des)esperança, ali prostrada, tiraria a magia da fonte, da ocasião. As rosas não falam, mas os outros... Não são os senões da cor, são os da condição cultural, social, econômica. Acontece que cultura, só serve a que for ilustrada dos clássicos, a condição social, só vale a das colunas sociais, e a econômica, só sendo a melhor. Enfim, ele tá fora da roda. Continua na roda do samba do morro, do samba da quadra da verde e rosa, ou do boteco do Mané, não na das “altas”.
Fita meus olhos, mesmo daí, e perdoa meus iguais e desiguais pelo pranto do poeta, pelos tempos idos, pelo silêncio do cipreste, pelos que difamam enquanto as rosas não falam, e, enquanto Deus consentir a mesma estória, dê bem feito a quem sequer é lembrado, porque só tinha cultura, condição social e econômica. Desses, não ficaram nem as notas verdes, quem dirá as musicais?!
Que sejam bem-vindos os cem anos que completas conosco. Não importam as dimensões diferentes, não importa se acham que é silêncio. Ciência e arte nos trazem teus sons de volta.

Discografia de Cartola:
1 Que sejam bem-vindos (Cartola)

2
Autonomia (Cartola)
3 Acontece (Cartola)
4 Senões (Nuno Veloso - Cartola)
5 O inverno do meu tempo (Roberto Nascimento - Cartola)
6 Que sejas bem feliz (Cartola)
7 Dê-me graças, Senhora (Cláudio Jorge - Cartola)
8 Quem me vê sorrindo (Carlos Cachaça - Cartola)

1 O inverno do meu tempo (Roberto Nascimento - Cartola)
2 A cor da esperança (Roberto Nascimento - Cartola)
3 Feriado na roça (Cartola)
4 Ciência e arte (Carlos Cachaça - Cartola)
5 Senões (Nuno Veloso - Cartola)
6 Mesma estória (Élton Medeiros - Cartola)
7 Fim de estrada (Cartola)
8 Enquanto Deus consentir (Cartola)
9 Dê-me graças, Senhora (Cláudio Jorge - Cartola)
10 Evite meu amor (Cartola)
11 Silêncio de um cipreste (Carlos Cachaça - Cartola)
12 Bem feito (Cartola)

1 Verde que te quero rosa (Dalmo Castelo - Cartola)
2 A canção que chegou (Nuno Veloso - Cartola)
3 Autonomia (Cartola)
4 Desfigurado (Cartola)
5 Escurinha (Arnaldo Passos - Geraldo Pereira)
6 Tempos idos (Carlos Cachaça - Cartola)
7 Pranto de poeta (Guilherme de Brito - Nelson Cavaquinho)
8 Grande Deus (Cartola)
9 Fita meus olhos (Osvaldo Vasquez - Cartola)
10 Que é feito de você? (Cartola)
11 Desta vez eu vou (Cartola)
12 Nós dois (Cartola)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Nepotismo nunca mais!

Nepotismo nunca mais!
Em que país mesmo?


O prazo que o Senado deu aos “abnegados” do povo para que parentes desses 80 escolhidos fossem bater noutra freguesia era 10 de outubro. Além de mandar as sanguessugas embora, ainda tinham que admitir o tamanho da caca, enviando uma simpática carta ao presidente do Senado.
Não se sabe se se intimidaram na hora de admitir quantos seriam os demitidos não demitidos, ou se, de novo, ponderando que isso aqui ô ô.. é um pouquinho de Brasil iá, ia, prazo é um detalhe que se conversa, que se negocia. Enfim, há de ter algum raciocínio do qual não temos alcance necessário.
Também pensei: que desrespeito ao chefe da casa! Quer dizer que o chefe manda e ninguém cumpre?! Ah! Como eu queria poder fazer isso, quando meu patrão me manda cuidar de alunos com necessidades especiais, junto com alunos ditos “normais”, quando nem eu nem meus colegas professores temos preparo técnico pra isso! Mas é a política de inclusão. É bonito. É justo. É correto. E eu cumpro. Eu não discuto, não desrespeito, não descumpro prazos. Atingimos uma droga de resultado, mas cumpro o que me mandam.
Até que a tarefa que os três poderes têm não é tão difícil assim. Dêem aos parentes o bilhete azul! Por que não cumprir? O povo também tem um prazo de validade no tocante à paciência. E a paciência está por um fio. Agora imagine só quando todo mundo souber que gente que não passa fome está mamando as últimas gotas das tetas do governo sem qualquer cerimônia, nem pressa de largar. Larga logo!
Por enquanto, a gente não tem nem como reclamar. Ou tem. Reproduzindo as palavras do Presidente do STF, Gilmar Mendes, “Cabe reclamação ao Supremo Tribunal Federal; esse é o instrumento. Pode depois haver desdobramentos, aí, a questão... aí deveria ser examinada especialmente pelo Ministério Público”. Também, o Presidente do Senado, Garibaldi Alves, reforça: "Qualquer cidadão pode denunciar, e o parlamentar pode ser processado, enfrentar um processo por crime de responsabilidade ou até mesmo de improbidade". Veja como estamos todos protegidos! Há uma lei que foi assinada, aprovada para que os três poderes cumpram, mas, se alguém não cumprir, só vai acontecer alguma coisa se alguém se sentir lesado e denunciar. Aí, entre a denúncia e a punição – que já se sabe qual será – vamos imaginar.... uns dois anos... três? Tá bom, três.
Só para coroar a notícia tão “bem” divulgada e divertida por fontes tão confiáveis do jornalismo global, fechamos com a pérola: “A presidência do Senado não soube informar que medidas poderão ser tomadas contra quem manter (Jesus! Era mantiver!) parentes no quadro de pessoal da Casa.” (Globo.com).

domingo, 12 de outubro de 2008

Engenharia em alta

Engenharia em alta: ... a etmológica


“As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.”
(Drummond)

Certamente a última flor do Lácio não nasceu da lei, dessa escrita no que chamamos de Carta Magna. Houve uma história escrita pelo povo e o próprio povo foi quem assinou o decreto criador da língua portuguesa.
Daí por diante, também decidiram, pela facilidade de pronúncia, pela contaminação de outros povos, ir trocando uma letra por outra, omitindo aqui, ali, acrescentando sons, trocando sons de lugar, mas, com certeza, ninguém levantou a pena dourada embebida em tinta nobre para dizer como é que devia ocorrer esse processo.
Houve, sim, uma boa participação de Camões ao fazer uso tão primoroso do português que, baseado na beleza do arranjo que fez, alinhavaram algumas regras básicas para se usar o idioma. Pelo menos consultaram a produção de alguém de fato genial.
Mas a questão que não quer calar é : qual foi o gênio que inspirou as últimas normas (de unificação para os países lusófonos) decretadas para a língua, sem sequer uma verdade lingüística brasileira que justificasse tamanha cretinice? Se não foi para escrever as primeiras regras da língua - como foi o caso da inspiração em Camões - , se não foi porque no Brasil se escreve ou se fala diferente e a norma já não mais correspondia à realidade, por que diabos resolveram assinar uma lei que não deixou um único brasileiro feliz – os políticos de plantão não contam. Ah! Tem também uns doutores universitários que argumentam que a mudança facilitou o uso da língua. Mas quem é que precisa facilitar? Não me lembro de um único japonês ter tentado mudar a escrita para facilitar a comunicação de seu povo. E sabe por quê? Porque a língua, como ela é, contém a história de seu povo, contém as entranhas de cada situação vivida pelas pessoas que habitam aquele país. O português do Brasil não conta nada dos outros países lusófonos. Ele conta do Brasil o que o Brasil é e viveu.
Bom, não é a primeira vez que tentam estuprar a história da palavra. E olha que propostas anteriores desejavam mais. Queriam tirar letras mudas! Por bom senso de alguém que conseguiu ser ouvido, não o fizeram. Seria uma tragédia inominável! (Soubemos depois que seriam só as letras “c” e “p” e em palavras usadas em Portugal somente. Mas até que isso fosse dito, ficamos delirando...) Seria obsceno (ou osceno)! Se queriam tirar o país do obscurantismo (ou oscurantismo), removendo todos os abcessos (ou acessos) sociais, acho que não conseguiriam. Mas desta vez... não faço idéia (agora “ideia”) da lambança.
Desde 1907, a confusão de tentar unificar a língua já acenava no Brasil, até porque com o aquecimento do mercado editorial, não era possível fazer livros com um português para o Brasil e outro para Portugal. Ou seja, desde esse tempo, o capitalismo já gritava aos nossos ouvidos e nós tínhamos que suportar a trombeta que anunciava o apocalipse que hoje se vive.
Antes disso, sustentada pela mentira de um espírito de nacionalidade, evidentemente fragilíssimo – como é que aquele mundo de escravos mal tratados podiam ter esta terra como pátria?! Como é que os beneficiados pelos portugueses podiam dar valor ao que não lutaram para ter?! – já tentavam unificar a língua portuguesa por meio de acordos, com a publicação de decretos. E os gramáticos achavam ótimo. Apoiavam, achavam que tinha que ser assim mesmo. O português tinha que ser um só. No decorrer desse mesmo século XX, então, a Academia Brasileira de Letras era a defensora mor de tal postura. Afinal, os escritores produziam suas obras para o Brasil, mas também para Portugal. Se o português fosse diferente, eles estavam fritos literalmente. Não publicariam nada, não venderiam nada e estariam como 99% dos escritores de hoje: na lona.
Estamos nós na lona, mas sabemos criar um bom tumulto. E é isso que interessa. Se eu coloquei alguma pulga atrás da orelha de alguém, já terá valido a pena continuar duríssima.

sábado, 11 de outubro de 2008

Inspiração do Blog

Nosso Tempo
Carlos Drummond de Andrade


I

Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei.
Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.

Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.

II

Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.

Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.

Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.

A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.

III

E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?

Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas,
cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes...
E muitos de vós nunca se abriram.

IV

É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.

É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.

No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.

VI

Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora sua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.

VII

Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco ? no público ? nas poltronas ?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.

VIII

O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos
e outras armas
prometa ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.